Imagina que você é o tema de um assunto que todos estão comentando, mas ninguém te chama para participar da conversa. É como se desenhassem um sapato que não te serve e pedissem para você calçar. Sem chances de caminhar assim.

Contar a própria história é cuidar para que a roupa que está sendo desenhada para você seja compatível com o seu tamanho, fique confortável e assim possamos seguir. Sobre o que ninguém vai falar só nós podemos falar“ – já dizia o rapper BK, citando a importância de se posicionar como protagonista das nossas próprias demandas e questionar a narrativa única vinda de olhares distantes que não nos alcançam.

Inadequação e sensação de não caber são sentimentos partilhados por pessoas marginalizadas que consequentemente afetam o olhar que desenvolvemos sobre nós mesmos e nossa perspectiva de futuro e criação de possibilidades. Fazendo uma alusão às vivências pessoais, lembrei da minha mãe, uma mulher negra, empregada doméstica. Como era comum ganhar roupas usadas de suas ditas “patroas“ e com isso, devido a estrutura corporal dela ser totalmente diferente, sempre ter que adaptar as peças ao seu tamanho, seja costurando, cortando ou inventando moda mesmo. Afinal, era o que tínhamos e precisávamos dar um jeito de caber. É comum em famílias pobres ouvir como foi tardia a possibilidade de comprar a primeira roupa nova, sem esta ter sido ganhada ou vinda de segunda mão, como chamamos as peças reutilizadas. Se moda é sobre expressão e expressão é sobre exercer plenamente sua cidadania, tirando do campo imaginário mas ainda sim em um processo inconsciente, como não pensar que a gente já começa cerceado no exercício de nos comunicar quando não temos acesso também ao consumo?

Na lírica dos rappers, versos que falam sobre o sonho em poder comprar o primeiro tênis é comum e vista como superficial por quem não entende a bagagem emocional que é estar fora desse acesso, ainda mais quando a aparência é um símbolo de distinção e está diretamente ligada a pertencer ou não. Durante o período de escravidão no Brasil, estar descalço era um apontamento de miséria e usar sapatos um código de liberdade. Logo, conseguir comprar roupas era poder acessar também lugares e, com isso, dignidade. Olhe para o rapper Djonga calçando um tênis Prada Cloudbust na capa do seu disco “Dono do lugar“ e me diga se a significância não é mais profunda do que teria, por exemplo, alguém que não possui esses marcadores sociais? 

A escritora negra Carolina Maria de Jesus foi a personificação dessas duas referências que trago, tanto em dizer o que ninguém mais falaria através do seu livro Quarto de despejo – em que conta uma realidade dura do Brasil à partir de um olhar “de dentro“ , que reconfigurou a narrativa que no contexto da época estava sendo difundida, a falácia da modernidade econômica chegando para todos. Ao contar sua própria história, Carolina obriga a sociedade a olhar para essa camada da população e suas nuances emocionais que eram bem complexas devido ao sofrimento social. Por outro lado, uma foto emblemática da escritora posando para fotógrafos, absolutamente elegante com um casaco icônico de penas de galinha d’Angola que ela mesma confeccionou para o carnaval, apontando ali a inventividade que vem da escassez – dom máximo de todo favelado, já que investir na aparência sempre foi uma tentativa de se reposicionar e se fazer respeitado em um país que tudo nos tirou, até mesmo os sapatos!

Criar coisas com as próprias mãos, seja uma peça de roupa ou um destino é mais que poesia. É um evento canônico de todo periférico que ousou colocar a cabeça pra fora e sonhar. Um exemplo são as confecções de roupas, além de ser uma tradição brasileira por sua facilidade em ser montada, em sua maioria, é um espaço majoritariamente feminino fomentando trocas.

Quando a gente fala sobre emancipar emocionalmente mulheres, precisamos falar de autonomia financeira, projeção de futuro. Nesta linha, um bom exemplo próximo é o curso de capacitação profissional de Modelagem, Corte e Costura oferecido pelo Bonsai Monte Cristo que tem reunido mulheres de baixa renda não só para aprender esse novo ofício, como também para ampliar suas perspectivas através de idas a programas culturais, teatros e universidades, incentivando um reposicionamento de seu olhares em direção a um futuro mais possível para essa camada que devido às desigualdades nunca pôde se imaginar dentro de outra dinâmicas sociais. 

Somente tendo acesso às ferramentas de construção de futuro vamos poder nos sentir seguros que mudanças estruturais no que tange essas desigualdades, sociais, raciais e de gênero de fato acontecerão. Nos empoderar quanto a nossa própria história aponta um caminho de mais saídas sendo desenhadas para nossas especificidades, ao nosso tamanho sem que precisemos nos esforçar para caber dentro e sim contribuir com nossa diversidade.

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