Existe uma música do cantor Rico Dalasam que entre seus versos ele diz: “Não falaria de alívio se não tivesse doído tanto. Tanto que eu não pude ser o mesmo ou o mesmo de antes“. Essa confissão se encontra com o verso seguinte admitindo: “Nossa melhor versão nunca foi na agonia“.

Traduzi para mim como uma autorização, um carinho, quase uma explicação para cobranças internas, que não são individuais e sim coletivas: 

“– Não confundir desconfortos e limitações causadas pela realidade da busca pela sobrevivência com o que de fato você é capaz de entregar em um cenário diferente onde, já tendo suas necessidades básicas sido atendidas, como moradia, emprego, saneamento, você pudesse se concentrar em se desenvolver e evoluir”, pensei…

Ao invés da reatividade da sobrevivência, a calma que vem da segurança de poder pensar possibilidades de futuro, projetos, começar um curso, um negócio… Algum tipo de previsibilidade sobre o que virá amanhã é algo que também compõe a saúde mental para qualquer ser humano. E a desigualdade social sequestra isso para si. Então, como pensar em decorar a casa se nem a base tá construída? 

A insuficiência de renda está acompanhada de privação em outras dimensões da vida. Mas não é uma constatação pessimista ou um texto te autorizando a desistir – “Tudo que se foi de mim, mas não perdi“ como compôs Caetano Veloso em Ofertório – e sim mostrar que é natural se sentir cansado, tentando alcançar uma melhor versão de você enquanto troca o pneu do carro com ele em movimento. Se conseguimos entregar tanto nessas condições, imagina em um cenário diferente.

Existe uma mentalidade no nosso país que sugere que tendo um bom desempenho, conseguindo dinheiro, logo você vai acessar esses serviços básicos numa lógica de que ter condições dignas de vida teria que ser uma conquista por merecimento enquanto em sociedades mais bem estruturadas o pensamento é inverso. Ter acesso a serviços básicos desde a infância não é a consequência de sua performance e sim a causa, indissociavelmente.

Uma amiga brilhante, que passara com altas notas no Enem para o curso de direito na UFRJ, se queixou que naquele semestre estava vendo seu desempenho cair porque no intuito de complementar a renda da casa teve que começar a trabalhar em um restaurante.   Graças a jornada de trabalho e tempo no transporte público adicionado agora a sua nova rota roubou também seu tempo e energia para o estudo. Nossa melhor versão nunca foi na agonia, e é por isso que somos tão bons, porque à pulso tivemos que aprender a existir em condições adversas. O craque da seleção antes de se consagrar ídolo jogou a vida inteira em campos improvisados dentro de uma favela, a mãe solo preta e periférica daria uma ótima gestora se tivesse a oportunidade de se aprimorar nos estudos pois sempre teve que lidar com cenários hipotéticos de pressão e escassez.

A luta é para que não precisemos de tanta luta para construir o básico. Mas descanse. Não estamos atrasados, apenas caminhando onde a linha de chegada está posicionada em um lugar diferente para nós

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